É verdade que uma certa literatura sobre jazz sustenta
que a sonoridade que um músico consegue obter do instrumento é
o prolongamento da voz e a chave da personalidade do intérprete.
Mas o pianista Paul Bley é uma excepção à regra.
Nos anos 60, em álbuns como "Footloose", com o contrabaixista Steve
Swallow e o percussionista Barry Altschul, Bley limou uma certa emocionalidade
excessiva do jazz avant-garde da década, para melhor a enquadrar
no contexto mais intimista do trio para piano. Esse foi um importante contributo
para o jazz, inicialmente ignorado pela atitude de muitos contemporâneos
de Paul Bley no saxofone.
Ao piano, Paul Bley parece pesar cada nota antes de a tocar, mesmo ao fraseá-la num breve movimento; repete a frase, dá-lhe maior ênfase uma segunda vez, como se se debatesse com o que acabou de dizer e decidisse que tem de repeti-lo, com itálicos verbais para enfatizar a importância. Sem recear o silêncio, Paul Bley consegue imprimir-lhe swing. Na conversa faz o oposto: conta graças sem parar em voz alta, na atitude de um disc jockey de rádio e com um olhar inveteradamente observador do lado cómico de tudo.
Paul Bley foi um pioneiro discreto do movimento dos anos 60
que libertou os combos pequenos das regras formais normalmente aceites
Paul Bley estava presente na noite de 1959 em que Ornette Coleman,
tocando um saxofone alto de plástico pouco habitual, fez a sua estreia
na Costa Leste face ao Jazztet de Art Farmer-Benny Golson, no Five Spot,
em Greenwich Village. Foi esta a bola de lançamento da primeira
revolução que abalou o jazz após o be-bop dos anos
40. "Todos estavam lá, incluindo o Miles Davis, que ficou de pé
a falar com o barman de costas voltadas para o palco, como se tivesse sede
e passasse por acaso para tomar uma bebida", recorda Paul Bley numa entrevista
recente dada na sua casa, a norte de Woodstock. Quem fosse alguém
no jazz da época poderia ter estado presente nessa noite. Mas Bley
era possivelmente o único a saber o que se podia esperar de Coleman
e do trompetista Don Cherry, pois tinha tocado frequentemente com eles,
no ano anterior, em Los Angeles (tinham tocado na formação
de Bley, juntamente com Charlie Haden e Billy Higgins, respectivamente
o contrabaixista e percussionista que Coleman trouxera para Nova Iorque).
"Quando Ornette acabou e o Jazztet começou a tocar, voltei-me para
o barman e convidei-o a dançar", conta Bley. "Depois do Ornette,
este grupo que, uma semana antes, tinha o melhor som do mundo, parecia
agora a orquestra de alta sociedade do Hotel Taft".
Numa época em que, na sua maioria, os músicos baseavam os solos improvisados e as composições originais em 32 compassos, A-A-B-A, o formato da canção da canção popular, recorrendo a mudanças de acordes e a chorus e bridges bem definidos, "o Ornette passava directamente de A para Z sem ninguém compreender", afirma Bley. "Sentiram-se ameaçados. Nas semanas seguintes, eu não podia descer a Boadway sem que algum músico meu conhecido me tocasse no cotovelo para me pedir que explicasse o que é que o Ornette andava a fazer".
Paul Bley era a pessoa indicada para responder, já que ele e o trompetista Herbie Spanier, por instigação de Bley, tinham tocado em Los Angeles duetos longos, totalmente improvisados, sem mudanças de acordes nem tempos definidos em 1957, um ano antes da primeira actuação de Bley com Coleman. Mas apesar da primeira experiência de Bley na passagem de A a Z, ele parecia uma figura algo periférica do free jazz, o movimento desencadeado por Coleman. Nos finais dos anos 60, Paul Bley tinha-se tornado um caso peculiar nesta revolução e o segundo em influência de todos os pianistas free, logo após Cecil Taylor.
Nascido em Montreal em 1932, Paul Bley tinha tocado com Charlie Parker e Lester Young quando era jovem. A entrada para o agrupamento de Sonny Rollins, em 1963, contribuiu para aumentar a sua credibilidade junto dos críticos e músicos que lamentavam que, na maior parte dos casos, o free jazz estivesse aberto a músicos amadores barulhentos e sem qualquer experiência. No entanto, para desvantagem de Bley, a música dele era invulgarmente calma no meio do free jazz e o facto de ser branco fazia-o correr o risco de ser excluído de um movimento cuja maioria negra se tornava cada vez mais separatista.
Agora que os fumos dos anos 60 se extinguiram, tem havido uma mudança de opinião, há muito esperada, a favor de Paul Bley. "Cecil Taylor é um fantástico virtuoso que encontrou a sua própria maneira de tocar, mas Paul Bley é para Ornette Coleman o que Bud Powell foi para Charlie Parker", afirmou recentemente o influente crítico Stanley Crouch, exprimindo aquilo que já se está a tornar um sentimento comum. "Foi ele quem compreendeu o que Ornette estava a fazer e que trouxe esse tipo de mobilidade tonal e de liberdade melódica para o piano".
Stanley Crouch é conselheiro para o "Jazz at Lincoln Center", um programa que pretende manter certas realidades como aquelas que Coleman rejeitou. Mas Wynton Marsalis, director artístico do "Jazz at Lincoln Center", há muito manifestou admiração pela música primitiva de Coleman, mesmo quando condenava a maior parte do que lhe veio a suceder. Marsalis e Crouch costumam estar no mesmo comprimento de onda, e a impressão favorável de Crouch a propósito de Bley contribui para explicar a sua participação na nova série do "Jazz at Lincoln Center" intitulada "Duetos no rio Hudson", que começa no sábado (Bley voltará a tocar com Haden, num programa que irá também apresentar duetos pelo pianista Kenny Barron e pelo saxofinista alto Gary Bartz).
Reconfigurar Ornette Coleman para piano não foi uma aventura fácil, uma vez que isso foi feito essencialmente in absentia e perante desafios aparentemente intransponíveis: as formações iniciais de Coleman não tinham piano, e o tom free estava aparentemente nos antípodas dos instrumentos temperados. Mas os contributos de Bley para o jazz durante os últimos 40 anos não acabam aí. Tendo sido um dos muitos músicos tentados pelas potencialidades dos sintetizadores e dos teclados em cadeia dos fins dos anos 60 e princípios de 70, foi também um dos poucos a usá-los para algo mais do que procurar efeitos sonoros de fundo e espaços rítmicos funky. A sua entrada para o movimento trouxe vantagens surpreendentes, tanto para Bley como para a música improvisada em geral.
Ao gravar o álbum a solo "Open to Love" para a etiqueta alemã ECM em 1972, num esforço para reproduzir os sons longos do sintetizador, Bley pediu que o microfone fosse colocado mais perto e que fosse dada atenção especial ao timbre na gravação do piano - técnicas de gravação que se tornaram a marca da ECM, embora tenham sido mais associadas a Keith Jarrett do que a Bley. Paul Bley publicou recentemente um texto de memórias em que demonstra ser um crítico de jazz inteligente e um interessante contador de histórias. Em "Stopping Time" (Vehicule Press), escrito com David Lee, Bley recorda que quando chegou a Nova Iorque pela primeira vez, no início da década de 50, um grupo de compositores, incluindo George Russell e John Carisi, estava a desafiar a ortodoxia do be-bop escrevendo pautas em que era usada a atonalidade e a métrica livre. Sopravam ventos de mudança, mas esta revolução radical estava condenada ao fracasso porque, depois de lerem as pautas, os músicos "lambiam" sons be-bop que lhes eram mais familiares, nos solos improvisados. Coleman foi uma revelação para Bley, quando este o ouviu pela primeira vez, porque explorava as mesmas vias que os compositores de Nova Iorque, mas fazia-o em palco, numa vitória decisiva da improvisação.
"Mas ele estava ainda a usar um ritmo fixo, e eu achava que isso era um retrocesso", comenta Bley. A inovação que Paul Bley aguardava veio a acontecer finalmente em 1964, quando o contrabaixista Gary Peacock o chamou para tocar em Greenwich Village com o saxofonista tenor Albert Ayler e o percussionista Sunny Murray. A percussão anárquica de Murray criava um contraponto livre, o que era a confirmação, para Bley, de que estavam derrubadas as últimas barreiras: os instrumentos rítmicos estavam libertos do seu papel tradicional de acompanhamento.
Este aspecto relaciona-se com um dos principais aspectos do contributo de Paul Bley para o jazz, que é a liberdade rítmica e harmónica que ele permitiu aos seus diversos contrabaixistas e percussionistas a partir da década de 60. O grupo de Miles Davis, em meados da década de 60, com Herbie Hancock, Ron Carter e Tony Williams, teve o crédito merecido de abrir o caminho para as secções rítmicas subjacentes aos instrumentos de sopro. Mas foi Paul Bley quem trouxe a mesma liberdade para o trio em piano, com contrabaixo e percussão como parceiros melódicos interactivos. O que tornou tudo isto ainda mais excepcional foram as constantes mudanças na composição dos trios de Bley. Músicos que tocam regularmente juntos poderiam até ser casados, afirmou. Nos anos 60, a maneira de tocar de Bley parecia ser indissociável da escrita de Carla Bley, sua primeira mulher, uma pianista que, só no fim dessa década, criou uma identidade como algo mais do que o produto criativo da costela de Adão do marido.
Após o divórcio, Bley associou-se a Annette Peacock, anteriormente casada com Gary Peacock, que, não tendo formação musical e sem ter escrito sequer uma nota de música, desabrochou para a composição depois de se ter casado com Paul Bley, em total harmonia com o marido. Durante algum tempo, Bley tocou novas composições das duas mulheres, e Gary Pecock foi frequentemente o contrabaixista. "A música era fácil", recorda Bley. "Mas as relações...". Actualmente, Bley está casado há quase 20 anos com a artista de vídeo Carol Goss, de quem é sócio numa companhia independente de produção de discos e vídeo dos anos 70, e prefere dispensar a música escrita.
O verdadeiro contributo de Bley para o Jazz foi a liberdade rítmica e harmónica que permitiu aos contrabaixistas e percussionistas a partir da década de 60
"O que eu poderia utilizar é tão ínfimo que pode ser totalmente improvisado", afirma. Bley grava assiduamente para diversas etiquetas europeias, fazendo um tipo diferente de álbum, em trio ou solo, de cada vez. As gravações que fez para a ECM, incluindo o recente "Not Two, Not One" (ECM 1670) com Gary Peacock e o percussionista Paul Motian, tendem a ser especulativas e impressionistas - embora frias - enquanto as gravações para a marca dinamarquesa SteepleChase são mais directas e líricas, incluindo frequentemente a interpretação, própria de Bley, de temas recolhidos nos standards do jazz e da pop. "Notes on Ornette" (SteepleChase SCCD 314377), com o contrabaixista Jay Anderson e o percussionista Jeff Hirschfield, é um programa expontâneo do mais puro que há em Ornette Coleman, e que revela a verdadeira essência das origens de Paul Bley.
Desde 1993, Paul Bley ensina duas vezes por mês no conservatório de música de New England, em Boston. Bley aconselha os alunos a tentar a execução sem acompanhamento e é este o domínio que mais o interessa actualmente. "Durante a tarde, no hotel, temos uma ideia que podemos experimentar nessa noite", afirma Bley.
"Depois de termos tocado durante mais de 40 anos, sabemos já ouvir o público respirar", continua. "Mas não me interessa muito o público, embora esta afirmação pareça egoísta. Um concerto deve servir para sabermos no fim aquilo que desconhecíamos no início".
Tradução Eva Bacelar
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